quarta-feira, maio 10, 2006

Se eu fosse ditador...

Ponto de vista: Claudio de Moura Castro
Se eu fosse ditador...

"O assunto pode ser visto de uma forma direta e simples, lembrando o ditado oriental 'Olho por olho, dente por dente' "

Tenho às vezes sonhos de virar ditador. Não um ditadorzinho qualquer, com medo de mandar e com poderes cerceados pelas forças ocultas. Mas um verdadeiro ditador, capaz de penetrar nas entranhas da sociedade e impor minha vontade. Segue uma lista de minhas primeiras providências, para quando se materializar meu sonho:

• Em solenidades oficiais, seria cobrada das autoridades uma taxa por minuto de discurso proferido. O tempo gasto nomeando as autoridades presentes seria cobrado em dobro. Só o primeiro minuto seria de graça.

• Os chefes teriam de entrar nas filas de sua repartição pública e ser atendidos por seus funcionários. Ou mandariam mãe e cônjuge em seu lugar. Os que exigem papéis inúteis teriam de ficar ajoelhados em grãos de milho.

• Autoridades educacionais teriam de matricular os filhos na escola sob sua responsabilidade. As de saúde teriam de se tratar na instituição que dirigem.

• Os reitores teriam de fazer os vestibulares de sua instituição, e os resultados seriam publicados nos jornais.

• O salário dos delegados de polícia seria ajustado de acordo com o número de crimes resolvidos e criminosos condenados. O da polícia federal, pelo tamanho das filas nos aeroportos. Quanto maior o tempo de espera, menor o salário.

• O salário dos funcionários públicos seria atrasado pela mesma medida do tempo de espera para despachar os processos. O mesmo se daria com os juízes.

• Todo presidente de empresa industrial teria de abrir a embalagem de seus produtos na frente das câmeras de TV. Por exemplo, mostrando como se abrem, sem melar as mãos, as geléias e as manteigas em caixinha.

• Igualmente, teriam de instalar os produtos que vendem e demonstrar como se usam os manuais de instrução, em particular os dos videocassetes.

• O valor da consulta médica ou odontológica seria reduzido proporcionalmente ao tempo de espera além da hora marcada. Os reincidentes seriam punidos com exercícios de caligrafia. Como compensação, a consulta seria mais cara quando o cliente se atrasasse.

• Os empresários da construção civil teriam de consertar pessoalmente as lajes que vazam, os encanamentos que infiltram e dormir em quartos de empregada que mais parecem armários.

• E haveria multa, cujo valor seria baseado no somatório do salário-hora de todos os que esperaram, para quem chegasse atrasado a reuniões.

• Os consertadores dos mais diversos aparelhos, impenitentes descumpridores de promessas, teriam transponders implantados no corpo e seriam rastreados por satélite.

• Os donos de hotel seriam chicoteados pela manhã se não respondessem a uma prova cujas respostas estariam em uma apostila com letra pequena, para ser lida à noite, nos quartos mal iluminados de seus hotéis.

Os exemplos estão no limite entre o sério e a brincadeira. O assunto pode ser visto de forma direta e simples, lembrando o ditado oriental "Olho por olho, dente por dente". Quem atrapalha merece ser atrapalhado.

Mas podemos teorizar com mais elegância. Em uma economia de mercado que funciona bem, os incentivos monetários premiam quem oferece bons serviços e penalizam ou multam quem atrapalha, atrasa ou deixa de prestar o serviço devido. No caso mais trivial, o produto ruim não vende. É essa "mão invisível" que lubrifica bilhões de relacionamentos e transações entre pessoas e empresas. Nos exemplos citados, a mão invisível não deu conta do recado. Os médicos não são punidos pelos atrasos. Não acontece nada quando a laje vaza. No caso do serviço público, as penalidades só existem para os clientes. Faz parte da arte de governar transformar em custo ou preço o prejuízo ou a inconveniência infligidos a outrem, penalizando ou atrapalhando quem atrapalha ou sonega serviços.

Pepe Figueres, depois de ter sido presidente da Costa Rica por duas vezes, candidatou-se a ditador nas eleições, com mandato fixo. Queixava-se de que na democracia não conseguiu eliminar a burocracia. Aguardo os votos de todos os cidadãos brasileiros para ser eleito ditador.

Revista Veja Edição 1871 . 15 de setembro de 2004