O Zé me disse
Joaquim Ferreira dos Santos
21.11.2005
Borogodó pode ser isso que o Houaiss está dizendo na página 492 do dicionário, um atrativo pessoal irresistível que faz com que o sujeito seu proprietário fique sempre rodeado de mulheres - mas não só. Mulheres também têm, não é um patrimônio masculino. Houaiss, cabra macho, devia achar tão evidentes os borogodós delas, aqueles ós todos, estupefações físicas tão visíveis espalhadas pelos recantos redondos de seus mapas, que ele resolveu deixá-las fora de um quesito que é pura abstração. Houaiss sabia. Borogodó não é a cintura desenhada da Gisele Bündchen. Aquilo é a evidência real de Deus. Borogodó você cria, sugere, em si mesmo. Está no ar. É o algo mais. É o ó que falta na natureza física da pessoa, e ela provém com um jeito de corpo, um arrebol que se cria passando a mão nos cabelos ou sorrindo, boca fechada ao estilo das ostras, insinuando que lá dentro se esconde - quer ver? - uma pérola.
O borogodó pode estar na maneira de falar, numa felicidade sugerida no canto da boca, o atrativo irresistível que a menina-dos-olhos emprestou aos seus - e outras poesias não concretas. É o etéreo da personalidade. O jeito da Marília Gabriela pontuar suas frases com um “escuta só”. É o que não se desenha nem cabe na foto.
A primeira vez que eu ouvi a palavra “borogodó”, ela estava sendo dita pelo cara mais feio do mundo, o nordestino Zé Trindade. Ele conquistava todas as mulheres das chanchadas do Herbert Richers nos anos 50. Quando os galãs desprezados perguntavam como ele conseguia, Zé cofiava o bigodinho fino, uma coisa pavorosa, virava-se para a câmera e, olho no olho das platéias que em seguida uivariam de tanto rir, dizia que fazia sucesso com as boazudas por ter bo-ro-go-dó. Soletrava solenemente a palavra como se beijasse cada um de seus ós, no agradecimento sincero por ter entendido que ali estava a chave para a felicidade dos desvalidos da beleza física evidente. Talvez fosse o jeito engraçado dele chegar junto. A cara de pau. Não sei. Eu percebia, elas então nem se fala. Caíam de quatro, nem aí para os pudores moralistas da época. O feioso Zé Trindade tinha borogodó.
Eu li o livro de memórias de Danuza Leão, lançado semana passada, e quando ela narra o casamento com o compositor Antônio Maria, um dos seus três maridos, confessa: “Maria não correspondia a nenhuma das minhas fantasias em relação aos homens”. A princípio ele não podia ser o objeto de desejo de ninguém. Antônio Maria era feio, gordo, calçava sapato de padre antigo, ia à praia de tamanco português e sacola de feira — era, enfim, o oposto da elegante Danuza, mulher do mundo, maneca de Jacques Fath em Paris. Um Shrek antes do tempo. Danuza não diz desse jeito, porque tem um vocabulário fino, mas ela foi fisgada pelo borogodó de Maria. “Ele tinha uma personalidade exuberante”, relata.
A vida é muito mais fácil quando você não precisa de borogodó nenhum. Deus te deu um par de olhos incríveis como os da Ana Paula Arósio, músculos poderosos como os do Zulu. Basta você apresentar tais armas para que o mundo se ponha aos seus pés e queira compartilhar. Com Antônio Maria não era assim. Já que ninguém percebia, ele precisava - desculpem a expressão - botar o borogodó para fora.
Maria tinha um amigo, Luís Carlos Santos, que viria a ser ministro da Coordenação Política do governo Fernando Henrique Cardoso. Era um cara classicamente bonito, o nariz com o desenho certo, a boca com aquela polpa na medida para o sonho de uma mordida. Maria invejava-o com carinho, e dizia por quê: “O Luís Carlos come a mulher com a cara. Ele mostra a cara e elas topam imediatamente. Comigo é o contrário. Eu, para uma mulher se interessar por mim, preciso de três horas de conversa até ela esquecer da minha cara”.
As três horas de conversa eram o borogodó de Antônio Maria.
Desde que, no mês passado, lancei um livro com a tal palavra no título, não me param mais na Rio Branco para perguntar, ei, moço, como se chega no Beco dos Barbeiros. Nas festas ninguém chega, ei, cara, se eu tenho detalhes escandalosos da paixão mal resolvida - “um jornalista, e não sabe que rola?!” - nessa briga do Palocci com a Dilma. Nada disso. O povo nas ruas quer saber que diabo é esse tal de borogodó. Como se pratica, onde se perdeu, se foi culpa do JK ou mais uma rata do Lula, se tem a ver com a gororoba do murucututu ou se na loja que eu comprei tinha para homem.
Se o Houaiss não sabe direito, se o Zé Trindade que inventou a coisa já morreu, eu fico à vontade para professorar minha ignorância e dizer de antemão, de ante pé, na ante-sala de quem se dispõe a entreouvir. Borogodó pode ser mais do que um atrativo que alguém inventa ou sublinha para se tornar especial já que Deus, na hora de transformar o rascunho em arte-final, deixou o teu projeto para lá e foi caprichar no desenho do Gianecchini que ele não é bobo, também quer sair na capa da “Caras” nem que seja para ganhar aquele crédito pequenino na página 44: produção - Ele.
Borogodó, já que a língua é o uso que a gente faz dela, pode ser a própria felicidade de seu portador evocar, com uma sonoridade antiga, o tudo de bom de que falam as adolescentes modernas. É o “já é”, o “é nós” dos funkeiros. Pode ser a “utopia” dos sociólogos. Uma palavra que vem de um tempo de evidente satisfação nacional - JK tinha, Maria Ester Bueno mais que o Guga - e que agora se escondeu num momento em que a auto-estima do país, o humor do Rio, tudo anda lá embaixo.
A grande gincana cívica é procurar onde o charme, a esperança, a beleza, o it, o sonho, a alegria do Zé Trindade e aquele certo “quê” de ser brasileiro, onde tudo isso se meteu. Dar uma busca atrás do perdido. Abrir o acento agudo na cara da tristeza e não deixar que o país do borogodó vire uma nação borocoxô.
21.11.2005
Borogodó pode ser isso que o Houaiss está dizendo na página 492 do dicionário, um atrativo pessoal irresistível que faz com que o sujeito seu proprietário fique sempre rodeado de mulheres - mas não só. Mulheres também têm, não é um patrimônio masculino. Houaiss, cabra macho, devia achar tão evidentes os borogodós delas, aqueles ós todos, estupefações físicas tão visíveis espalhadas pelos recantos redondos de seus mapas, que ele resolveu deixá-las fora de um quesito que é pura abstração. Houaiss sabia. Borogodó não é a cintura desenhada da Gisele Bündchen. Aquilo é a evidência real de Deus. Borogodó você cria, sugere, em si mesmo. Está no ar. É o algo mais. É o ó que falta na natureza física da pessoa, e ela provém com um jeito de corpo, um arrebol que se cria passando a mão nos cabelos ou sorrindo, boca fechada ao estilo das ostras, insinuando que lá dentro se esconde - quer ver? - uma pérola.
O borogodó pode estar na maneira de falar, numa felicidade sugerida no canto da boca, o atrativo irresistível que a menina-dos-olhos emprestou aos seus - e outras poesias não concretas. É o etéreo da personalidade. O jeito da Marília Gabriela pontuar suas frases com um “escuta só”. É o que não se desenha nem cabe na foto.
A primeira vez que eu ouvi a palavra “borogodó”, ela estava sendo dita pelo cara mais feio do mundo, o nordestino Zé Trindade. Ele conquistava todas as mulheres das chanchadas do Herbert Richers nos anos 50. Quando os galãs desprezados perguntavam como ele conseguia, Zé cofiava o bigodinho fino, uma coisa pavorosa, virava-se para a câmera e, olho no olho das platéias que em seguida uivariam de tanto rir, dizia que fazia sucesso com as boazudas por ter bo-ro-go-dó. Soletrava solenemente a palavra como se beijasse cada um de seus ós, no agradecimento sincero por ter entendido que ali estava a chave para a felicidade dos desvalidos da beleza física evidente. Talvez fosse o jeito engraçado dele chegar junto. A cara de pau. Não sei. Eu percebia, elas então nem se fala. Caíam de quatro, nem aí para os pudores moralistas da época. O feioso Zé Trindade tinha borogodó.
Eu li o livro de memórias de Danuza Leão, lançado semana passada, e quando ela narra o casamento com o compositor Antônio Maria, um dos seus três maridos, confessa: “Maria não correspondia a nenhuma das minhas fantasias em relação aos homens”. A princípio ele não podia ser o objeto de desejo de ninguém. Antônio Maria era feio, gordo, calçava sapato de padre antigo, ia à praia de tamanco português e sacola de feira — era, enfim, o oposto da elegante Danuza, mulher do mundo, maneca de Jacques Fath em Paris. Um Shrek antes do tempo. Danuza não diz desse jeito, porque tem um vocabulário fino, mas ela foi fisgada pelo borogodó de Maria. “Ele tinha uma personalidade exuberante”, relata.
A vida é muito mais fácil quando você não precisa de borogodó nenhum. Deus te deu um par de olhos incríveis como os da Ana Paula Arósio, músculos poderosos como os do Zulu. Basta você apresentar tais armas para que o mundo se ponha aos seus pés e queira compartilhar. Com Antônio Maria não era assim. Já que ninguém percebia, ele precisava - desculpem a expressão - botar o borogodó para fora.
Maria tinha um amigo, Luís Carlos Santos, que viria a ser ministro da Coordenação Política do governo Fernando Henrique Cardoso. Era um cara classicamente bonito, o nariz com o desenho certo, a boca com aquela polpa na medida para o sonho de uma mordida. Maria invejava-o com carinho, e dizia por quê: “O Luís Carlos come a mulher com a cara. Ele mostra a cara e elas topam imediatamente. Comigo é o contrário. Eu, para uma mulher se interessar por mim, preciso de três horas de conversa até ela esquecer da minha cara”.
As três horas de conversa eram o borogodó de Antônio Maria.
Desde que, no mês passado, lancei um livro com a tal palavra no título, não me param mais na Rio Branco para perguntar, ei, moço, como se chega no Beco dos Barbeiros. Nas festas ninguém chega, ei, cara, se eu tenho detalhes escandalosos da paixão mal resolvida - “um jornalista, e não sabe que rola?!” - nessa briga do Palocci com a Dilma. Nada disso. O povo nas ruas quer saber que diabo é esse tal de borogodó. Como se pratica, onde se perdeu, se foi culpa do JK ou mais uma rata do Lula, se tem a ver com a gororoba do murucututu ou se na loja que eu comprei tinha para homem.
Se o Houaiss não sabe direito, se o Zé Trindade que inventou a coisa já morreu, eu fico à vontade para professorar minha ignorância e dizer de antemão, de ante pé, na ante-sala de quem se dispõe a entreouvir. Borogodó pode ser mais do que um atrativo que alguém inventa ou sublinha para se tornar especial já que Deus, na hora de transformar o rascunho em arte-final, deixou o teu projeto para lá e foi caprichar no desenho do Gianecchini que ele não é bobo, também quer sair na capa da “Caras” nem que seja para ganhar aquele crédito pequenino na página 44: produção - Ele.
Borogodó, já que a língua é o uso que a gente faz dela, pode ser a própria felicidade de seu portador evocar, com uma sonoridade antiga, o tudo de bom de que falam as adolescentes modernas. É o “já é”, o “é nós” dos funkeiros. Pode ser a “utopia” dos sociólogos. Uma palavra que vem de um tempo de evidente satisfação nacional - JK tinha, Maria Ester Bueno mais que o Guga - e que agora se escondeu num momento em que a auto-estima do país, o humor do Rio, tudo anda lá embaixo.
A grande gincana cívica é procurar onde o charme, a esperança, a beleza, o it, o sonho, a alegria do Zé Trindade e aquele certo “quê” de ser brasileiro, onde tudo isso se meteu. Dar uma busca atrás do perdido. Abrir o acento agudo na cara da tristeza e não deixar que o país do borogodó vire uma nação borocoxô.

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